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21/02/2015

Mário de Andrade: Nos 70 anos de morte, autor terá homenagem e material inédito será lançado

Foto: Reprodução

Crítico literário questiona se a "eternidade" apenas o transformará no maior intelectual brasileiro da primeira metade do século 20

Por Silviano Santiago - No ano em que se completam os 70 anos da morte de Mário de Andrade (25/2/1945) e em que a Flip se adianta e valoriza a data, visto a pele de um incômodo Mallarmé e me pergunto se a “eternidade” apenas o transformará no maior intelectual brasileiro da primeira metade do século 20. Começo pela pergunta exigente porque são vários os obstáculos que dificultam armazenar a figura e a obra de Mário no século 21.

 

Vida e obra ainda estão para e por ser lidas no século 21

 

Nos anos 1920 e nas duas décadas que se seguiram, ninguém foi mais apaixonadamente modernista entre os nossos modernos. Com sua inesgotável correspondência, de notáveis artigos críticos e de crônicas jornalísticas doutrinárias, Mário se transformou no divulgador-mor da vanguarda europeia que, pela rota do Atlântico, fazia às avessas a trajetória do café paulista. Quis ser útil. Não fez arte pela arte, mas, sim, “arte de ação pela arte”.

 

Em meados daquela década, sua condição de “papa” do modernismo brasileiro é invocada de modo elogioso - e em seguida apedrejada por Graça Aranha - na série de entrevistas que ele e cinco companheiros de geração dão ao jornal A Noite. Ainda hoje vale a pena consultar o volume O Mês Modernista (1994), em que Homero Senna reúne os recortes do jornal carioca, guardados zelosamente por Pedro Nava.

 


"As Cirandas e em consequência as Cirandinhas, sem dúvida das coisas

mais geniais do Villa, ele as deve a mim”, escreve o poeta (Reprodução)

 

Na década seguinte, em novembro de 1936, Mário dá aos jovens cariocas uma sofrida resposta à pergunta sobre sua aterrissagem na eternidade. Invoca primeiro sua condição de funcionário público na administração paulista: “Eu tirava o escritor de foco, botando o foco no funcionário que surgia. Me suicidei sim porque tinha medo de mim mesmo”. Comenta em seguida: “Vocês não sabem que, ao pesar sem nenhuma piedade as minhas forças de escritor, e reconhecendo elas fracas para uma eternidade, orientei toda a minha obra pra uma utilidade momentânea, mesmo com sacrifício de qualquer ideia de perfeição” (Cartas a Murilo Miranda).

 

Mário não foi menos contundente e menos dramático em 1942, quando, em pleno Estado Novo, a Semana de Arte Moderna completou 20 anos. O paulista abre a guarda no auditório do Itamaraty e proclama: “E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas”.

 

As constatações dolorosas sobre o valor perecível da obra se deslocam de modo unidirecional. Em diálogo franco com a autocomiseração, a eternidade constatará o óbvio: os intelectuais e artistas representativos do seu tempo acabam por espalhar pelo caminho cacoetes que se assemelham aos bordões que tornam célebres atores medíocres. Bordões, Mário os inventou, e muitos se tornaram - à semelhança do poema sobre a pedra no meio do caminho de Carlos Drummond - amados, apropriados e repetidos à exaustão pelos admiradores. Sua definição de conto (“será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”) persegue jovens escritores e diletantes como a exitosa Pasárgada de Manuel Bandeira.

 

Mas não há por que botar fé numa visão diminuída dos artistas desbravadores do Brasil moderno. Não foram intelectuais monolíticos. Pelo contrário. Não é Mário quem confessou em poema de Remate de Males: “Eu sou trezentos... sou trezentos-e-cinquenta”? Como devoto de Cristo, ele também nos teria alertado: Devagar com o andor, que o santo é de barro.

 

Mais apressado o caminhar com o andor, mais palpável a atualidade de Mário. O santo é de barro. E é eterno. No chão do século 21, vida e obra se espatifam em trezentos-e-ciquenta fragmentos desvairados. Se apreendidos pela crítica, estarão sendo representados por uma espécie de mapa ferroviário, que revelará a personalidade múltipla e ainda desconhecida de Mário. Como personagem de Albert Camus, o modernista esteve sempre a desenhar para os pósteros o caminho mais jeitoso e único. E a academia e os historiadores caíram no engodo.

 

É preciso nos liberar da ditadura institucional que trafegou pelo caminho jeitoso e único. É preciso atentar para a multiplicidade dos ramais que se abrem nos centros de gravitação da obra e nos levam a vários e imprevisíveis destinos. Na vasta obra de Mário, cada estação de estrada de ferro é lugar - se não for motivo - para baldeação. Vida e obra ainda estão para e por ser lidas no século 21. Comecemos por arregaçar as mangas.

 

No milênio globalizado, Macunaíma parece entoar o canto do cisne. No entanto, ensaístas da nova geração retomam com unhas filosóficas e dentes ideológicos a questão indígena pelo viés da “apocalíptica contracultura pós-moderna” (se me permitem a etiqueta). Associam-na à contribuição do afro-brasileiro e à condição da pobreza mundial. Estamos desgostosos de ser modernos e consumistas. Eduardo Viveiros de Castro afirma que os índios “podem nos ensinar a voltar à Terra como lugar do qual depende toda a autonomia política, econômica e existencial. Em outras palavras: os índios podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior. Porque o mundo vai piorar”.

 

Quando a nova geração de intelectuais picados pela mosca azul do poder ocupa o ministério e as secretarias de cultura estaduais e municipais, querendo fomentar uma arte motivada pelo povo e direcionada pelo engrandecimento igualitário da nação, nada como ter na escrivaninha de trabalho os escritos circunstanciais e definitivos de Mário sobre a recuperação da memória artística popular, a máquina da burocracia, a mediocridade dos políticos... Melhorariam as reflexões enganosas dos atuais donos do assento.

 

Por fim, elenco um tópico delicado, que permanece como terra ignota. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Antonio Candido esclareceu que Mário “era um caso muito complicado, era um bissexual provavelmente”. Acrescenta em seguida que ele “tinha uma sensibilidade de homossexual”. E constata: “Isto é fora de dúvida, vê-se pela obra dele”. Dá como exemplo os poemas de Girassol da Madrugada (1931), hoje no Livro Azul. Pena que as iniciais do amigo a quem é dedicado o poema só estejam decodificadas em carta a Manuel Bandeira que, por sua vez, se encontra guardada a sete chaves na Casa de Rui Barbosa.

 

Mas compensa transcrever palavras irretocáveis de outra carta que Mário envia a Manuel Bandeira. Está datada de março de 1931, mês em que escreve os poemas de Girassol da Madrugada. Nela se lê: “Ah! meu irmãozinho, o amor se abancou de novo no meu rancho, mas é bom nem falar porque sou dolorosamente feliz. Isso da gente ficar uma noite inteirinha, quatro horas eu passei! reclinado sobre um corpo alvíssimo e dócil, parolando, descobrindo uma alma espontânea, maravilhosamente descobridora, dizendo coisas incríveis para quem não lê nos livros, e um dedo espantado passeando no nosso rosto, seguindo o caminho das rugas e dos traços já acentuados pela idade, olhos incríveis de assombro não podendo se explicar que possam amar a feiura...”.

 

Mário, o feio, transcreve em seguida duas estrofes do poema Girassol da Madrugada. Delas retiro estes versos: “Carne que é flor de girassol, sombra de anil, / Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril, /Em que espraia o teu sinal, suave, perpetuamente”.

 

Silviano Santiago é crítico literário.

 

Fonte: O Estado de S. Paulo

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