28 de Marco de 2024 - Ano 10
NOTÍCIAS
Mulher
25/05/2018

Sociedade infantiliza a mulher enquanto hipersexualiza a criança

Foto: Reprodução

Erotização precoce contribui para naturalizar práticas intoleráveis como abuso e violência

De minissaia e barriga de fora, Britney Spears estourou vestida de colegial no clipe “Baby One More Time”, em 1999. Mesmo ano em que, no Brasil, o grupo Mulekada, formado por crianças com menos de dez anos, dançava de shortinho na TV cantando “requebra gostoso, rebola a bundinha, vai até o chão”.


São duas faces da mesma moeda: enquanto Britney associava sensualidade e adolescência para um público mais velho, o grupo de axé ensinava as crianças a esperar nove meses depois de pegar uma mulher pelo braço e “meter em cima e embaixo”.


De um lado, a cultura infantiliza e objetifica as mulheres e, de outro, sexualiza as crianças. Essa exploração do universo infantil como potencialmente erótico faz parte do que a psicóloga Jane Felipe de Souza, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, chama de “pedofilização” —e que não acabou dos anos 1990 para cá.


Há uma contradição na sociedade, diz ela: ao mesmo tempo em que se criam leis para proteger as crianças, elas são viabilizadas como corpos desejáveis num contexto de espetacularização do corpo e da sexualidade.


Segundo estudo da Associação Americana de Psicologia, a sexualização precoce pode criar um desejo por meninas que justifica e forma um mercado para pornografia e exploração sexual de crianças. “Se a parceira sexual idealizada tem 15 ou 16 anos, consumidores masculinos podem demandar pornografia que tenha essas meninas e a oportunidade de pagar por sexo com elas”, diz a pesquisa.


Ao retratar a infância como algo que pode ser sexy, a cultura acaba por naturalizar práticas como abuso, violência e exploração sexual e comportamentos machistas.


“Pode-se dizer que a ‘pedofilização’ é uma forma de violência, na medida em que funciona como preparação, uma espécie de preâmbulo para o assédio e o abuso/violência ou mesmo para a exploração sexual, em muitos casos”, afirma a psicóloga Jane Felipe de Souza.


Essa “pedofilização”, diz a pesquisadora, se manifesta em vários artefatos culturais: programas de TV, jogos, músicas, peças, filmes, moda. Na televisão, está em personagens de animes com pernas longas e saias curtíssimas.


Já na música, o uso da palavra “novinha” transcende gêneros. Os sertanejos Henrique e Juliano cantam em “Vem Novinha”: “Vem, novinha, delícia do papai” e “me provocou, agora você vai ver”. No funk, MC Don Juan pede em “Oh Novinha”, ouvida mais de 35 milhões de vezes no YouTube, que a novinha vá à favela “sentar no pau”. Em ritmo de hip-hop, o grupo Son d’Play deixa a novinha dormindo no motel com a conta para pagar.


Nesta década, as buscas pelo termo “novinha” cresceram exponencialmente, alcançando picos de popularidade no fim de 2015 e 2017, segundo dados do Google Trends.


Quem vai atrás de novinhas na internet quer sexo. Entre as buscas relacionadas ao termo estão “novinha sexo”, “porno novinha”, “novinha dando”, “novinha gostosa” e “comendo novinha”. As 25 consultas mais frequentes com a palavra têm conotação sexual.


Panorama do ano passado feito pelo site de vídeos pornográficos Pornhub também mostra um interesse por cenas com jovens: entre as dez buscas mais frequentes no Brasil está “adolescente”. Segundo Jane Felipe de Souza, estamos desenvolvendo uma espécie de olhar pedófilo sobre crianças e adolescentes. “Como se disséssemos: desejem esses corpos, usem e abusem deles.”


Embora a cultura construa comportamentos, ela também é um reflexo da sociedade. A antropóloga Adriana Facina, estudiosa do funk, ressalta que o gênero mais criticado pelo uso da palavra “novinha” e por letras machistas é uma produção cultural contextualizada, ligada à juventude negra e pobre de periferias.


“A gente tem que discutir a erotização de crianças e adolescentes”, diz. “Mas a gente tem que pensar em que máquina engendra isso. Discutir isso é enfrentar machismo, desigualdade social, propor uma democratização da indústria cultural e da mídia. Se não a gente ataca só os efeitos, não as causas.”


A sexualização de meninas nas letras de funk deve ser problematizada, afirma, mas é preciso discutir o que causa essa erotização. “O que leva a isso? É o funk? Ou é o fato de meninas muito jovens terem que cuidar dos irmãos porque as mães trabalham e não têm creche?”, pergunta.
Para ela, vivemos numa cultura profundamente machista, e concentrar as críticas no funk mostra uma falta de foco. “Somos um dos países campeões em feminicídio. Uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil”, diz. “Esses números não são considerados prioritários no combate ao machismo. Mas cercear o funk, sim. Acho que é uma inversão total de prioridades.”


Letras problemáticas de funk são questionadas pelo próprio movimento, diz ela, citando o caso de “Surubinha de Leve”, de MC Diguinho, que causou polêmica neste ano com uma letra que dizia “taca bebida, depois taca a pica e abandona na rua”.


“Quem combateu foram as mulheres do funk. Um dos caminhos para enfrentar o machismo no funk é estimular que mulheres tenham mais espaço”, afirma Facina.


Felipe de Souza ressalta que a cultura está sempre em movimento. Sem que a do Brasil mude, diz a socióloga Graça Gadelha, especialista em infância e juventude, não adianta ter leis de combate à violência sexual contra crianças, pois não serão implementadas de fato. “Só a legislação não dá conta. Infância, sexualidade e violência são três conceitos intrinsecamente ligados à questão cultural.”
 

Uol

LEIA MAIS
DEIXE SEU COMENTÁRIO

Nome:

Mensagem:

publicidade

publicidade

publicidade

publicidade

publicidade

Acompanhe o Portal do Zacarias nas redes sociais

Copyright © 2013 - 2024. Portal do Zacarias - Todos os direitos reservados.