Grande Rio, Viradouro e Portela são as melhores da primeira noite, mas cometem erros que permitem sonho das escolas de segunda. Mangueira veio sem brilho
Nos 36 anos em que o desfile das grandes escolas de samba cariocas acontece em dois dias — a partir de 1984 —, a campeã saiu de domingo apenas seis vezes — 16% dos carnavais. Em 2020, a primeira metade da maratona de samba chegou ao fim sob o sol da segunda-feira ameaçando repetir a tradição.
O aguardado primeiro dia, que oferecia candidatas fortes ao título nas especulações pré-folia, teve bons desfiles sim — mas acidentes também. Assim, a campeã pode, novamente, desfilar na segunda-feira.
Entre qualidades e deficiências, Portela, Grande Rio e Viradouro foram as melhores do primeiro dia, que teve ainda a Mangueira sem brilho e a Tuiuti regular. As decepções ficaram com Estácio e, principalmente, União da Ilha, que vão para a apuração ameaçadas pelo rebaixamento.
Único que empolgou
Mais bem estruturada escola da Cidade do Samba, a Viradouro pode sonhar com o título, após o desfile excelente, o único que empolgou a Sapucaí no domingo. A homenagem às Ganhadeiras de Itapuã, no enredo "Viradouro de alma lavada", rendeu apresentação bem realizada, de belas alegorias e componentes empolgados sustentando o canto.
A passagem da vermelho e branco de Niterói, aliás, demoliu a crença de que o público fica frio no início da festa. A paradinha da bateria de mestre Ciça no verso "Ó mãe, ensaboa, mãe" levantou a arquibancada, no momento mais empolgante da noite. O samba conduzido pelo excelente Zé Paulo Sierra também enfeitiçou os componentes, que cantaram como se não houvesse amanhã.
Mas domingo não é dia de perfeição — e o carro da ganhadeira, o último a passar, apagou na segunda metade, garantindo o drama niteroiense na apuração de quarta-feira. Mas a turma vermelha e branca atravessará a Ponte novamente no sábado, para o Desfile das Campeãs.
Melhor samba do ano
Encontrará o povo de Caxias, com a Grande Rio de volta às primeiras colocações, após dois anos desastrosos. O melhor samba do ano pavimentou desfile memorável da tricolor, como há muitos carnavais ela não fazia. Para completar, o enredo "Tata Londirá — o canto do caboclo no quilombo de Caxias" passou em alegorias e fantasias brilhantes, da dupla de carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad. Eles estrearam no Grupo Especial com talento, apuro e personalidade para construir carnaval quase impecável.
A perfeição foi inviabilizada por dramáticos problemas de mobilidade nas primeiras alegorias, que precisaram ser reparadas em plena Sapucaí. A Grande Rio, assim, tem angústias contratadas para a apuração na Quarta-Feira de Cinzas. Mas estará de volta no sábado.
Portela canta como nenhuma outra
Assim como a Portela, a que menos errou no domingo de carnaval. A espetacular águia high-tech de Márcia e Renato Lage abriu desfile de ótimo nível da maior campeã de todas. Candidata a mais um título, a escola contou a História do Rio antes do Rio — em "Guajupiá, terra sem males" — com fantasias e alegorias impecáveis e um samba dos melhores.
A apaixonante tradição portelense surgiu no início da escola, com a resiliência de Vilma Nascimento. A lendária porta-bandeira recuperou-se de uma cirurgia na cabeça, teve alta na véspera e, aos 81 anos, foi à Sapucaí desfilar com sua tribo. Sua herdeira atual, Lucinha Nobre, apareceu com barriga de grávida, e "pariu" um bebê indígena ao fim de cada apresentação para os jurados. Depois dela, veio uma escola que canta como nenhuma outra atualmente, entoando o belo samba de 2020.
As fantasias impressionaram pela elegância — ainda que não tenham conseguido driblar o perigo de enredos indígenas: a dificuldade para variar o tema das alas. O conjunto de alegorias foi especialmente inspirado — dos melhores que passaram no domingo.
Se não arrebatou, a Portela tem lugar certo nas campeãs - e, na matemática torturante dos décimos das notas, pode até chegar ao 23º título.
Imagem mais impressionante
No domingo de tantas interrogações, uma certeza será difícil de derrubar: o Cristo negro gigante crucificado, no quarto carro da Mangueira, é a imagem mais impressionante do carnaval 2020. Foi o grande acerto da verde e rosa que busca o bi. O resto da apresentação não empolgou o público.
"A verdade vos fará livre" deu num desfile mais frio do que a Estação Primeira costuma apresentar. A primeira parte — baseada na história bíblica, mas com o Cristo negro — não provocou reação da plateia. Tampouco dialogava com samba, que não trouxe menções a essa parte do enredo. O hino verde e rosa, aliás, não causou reação no público e os próprios componentes cantaram burocraticamente.
A comissão de frente, dos craques Priscila Mota e Rodrigo Neri, passou pela Santa Ceia e terminou com Jesus na favela — a Mangueira. O júri da Liesa deve enxergar alguns pecados na verde e rosa. Mas ela volta na campeãs.
Tuiuti passará sustos
O público ficou mesmo indiferente ao encontro de Dom Sebastião com São Sebastião na Paraíso do Tuiuti. "O santo e o rei: encantarias de Sebastião" rendeu desfile no máximo regular, que o samba animado como ponto alto, especialmente no refrão. A Tuiuti passará alguns sustos nas notas, mas deve permanenecer na elite do samba. Mas será o pior ano da escola desde 2018, quando foi vice-campeã.
Estácio tenta fugir da sina
Para quem carregava o carimbo de candidata ao rebaixamento antes de o desfile começar, a Estácio fez o possível para fugir da sina. Sob o enredo "Pedra", a carnavalesca Rosa Magalhães — em seu 50° desfile — toureou a dificuldade financeira para construir apresentação melhor nas fantasias do que nas alegorias.
Os carros pecaram pela irregularidade — e o melhor exemplo é o segundo, "Pedras preciosas", bem mais pobre do que os outros. As fantasias estavam claras, leves e bem construídas. O samba, acelerado, foi cantado pelos componentes, mas não cativou a plateia. Serviu como emblema de uma apresentação irregular. A Estácio terá pedras a carregar para sobreviver na elite da Sapucaí.
Acidentes e decisões erradas
Fotos: Reprodução
Tarefa bem mais difícil para a União da Ilha, e seu conjunto de acidentes e decisões erradas. O enredo de aguda crítica saiu gravemente ferido pelo mau gosto na escolha da narrativa. A exceção foi o abre-alas, a favela emoldurada pelos helicópteros da polícia, que chamou a atenção do público.
Daí em diante, só erros praticamente. As fantasias da bateria — uniformes escolares — exageraram na simplicidade. O sequestro no ônibus, com arma na cabeça e simulação de agressões, é daquelas ideias que não combinam com a festa. Laíla, o mítico diretor de carnaval, estreante na escola, repetiu, pelo terceiro ano, o estilo de denúncia inflamada "contra tudo que está aí". Foi assim na Beija-Flor, em 2018, e na Tijuca, ano passado. O Brasil merece as pauladas — mas fica baixo astral demais.
A Ilha corre sério risco de cair.
E o domingo, de passar mais um ano sem a campeã do carnaval.
O Globo