16 de Abril de 2024 - Ano 10
NOTÍCIAS
Mulher
02/05/2019

Quem é mulher para o esporte? Tribunal pode ter banido duas medalhistas olímpicas

Foto: Reprodução

Num plano pessoal, foi uma derrota para a sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica nos 800m, que discordava dos limites estabelecidos para atletas mulheres que produzem naturalmente taxas elevadas de testosterona

No atletismo de pista, as mulheres que naturalmente produzem níveis elevados de testosterona terão de baixar a taxa de hormônios a fim de poderem participar de algumas das provas de grandes competições, como os Jogos Olímpicos. Esta foi a decisão da mais alta corte de direito esportivo, divulda nesta quarta, e pode ser um marco num debate sobre quem é mulher para o esporte olímpico.


Num plano pessoal, foi uma derrota para a sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica nos 800m, que discordava dos limites estabelecidos para atletas mulheres que produzem naturalmente taxas elevadas de testosterona, hormônio que constrói os músculos.


Veja também

Famosos pelo estilo de jogo, Diniz e Sampaoli medem força pela primeira vez na Vila Belmiro


Se Semenya quiser continuar participando na elite de sua especialidade, os 800m, terá de enfrentar três escolhas difíceis:


1. Ou tomar drogas de supressão de hormônios a fim de reduzir sua taxa para 5 nanomoles por litro;


2. Ou competir contra homens;


3. Ou entrar em competições para atletas intersexuais, caso surja alguma.


Caso não opte por nenhum dos três, terá de desistir de sua eligibilidade para correr os 800m numa Olimpíada.


Num momento da cultura em que a fluidez de gênero é mais aceita, a sentença afirma a necessidade que o mundo dos esportes tem por linhas distintas de gênero, salientando que elas são essenciais para a justiça nas competições femininas.


"Os especialistas em estudos de gênero passaram os últimos 20 anos desconstruindo os sexos e, de repente, eles encaram uma instituição com uma história completamente oposta", disse Doriane Lambelet Coleman, professora de direito da Universidade Duke e corredora de elite dos 800m nos anos 1980. Ela serviu como testemunha-especialista para a Federação Internacional de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês). "Temos que perguntar o que é mais importante: respeitar a identidade de gênero ou ver corpos femininos no pódio?"


A biologia de Semenya, que tem 28 anos, é esquadrinhada há pelo menos uma década, desde que ela surgiu no Mundial de Atletismo de 2009 e foi submetida a testes de sexualidade logos após a vitória.

 

Na África do Sul, governantes reclamaram de racismo. A questão sobre se uma rara condição biológica dava a Semenya uma vantagem injusta rapidamente se transformou numa batalha sobre privacidade e direitos humanos, da qual a corredora se transformou em símbolo. Sobre sua condição biológica, suas declarações nunca foram muito além de dizer que foi Deus quem a fez do jeito que ela é.


Uma decisão com brechas


Ao tornar pública sua sentença, a Corte Arbitral do Esporte (CAS) abordou a complicada questão que se agarra ao mundo do atletismo há anos e que envolve fair-play, identidade de gênero, biologia e direitos humanos: uma vez que as provas são dividas em categorias masculina e feminina, qual é a forma mais justa para decidir quem pode disputar as provas para mulheres?


Numa decisão por 2 votos a 1, a corte decidiu que as restrições sobre níveis permitidos de testosterona naturalmente produzida são discriminatórias, mas que tal discriminação "é um meio necessário, razoável e proporcionado" para atingir o objetivo do atletismo, que é o de preservar a integridade da competição feminina.


Foi uma vitória da Iaaf, ainda que incompleta. A federação afirmou que estava "grata" pela decisão desta quarta-feira.


A Iaaf afirmava que os atletas classificados com "diferenças no desenvolvimento sexual", também conhecidos como atletas intersexuais – principalmente as mulheres que possuem níveis de testosterona dentro dos limites masculinos – têm uma vantagem injusta nas provas femininas de 400m a 1 milha, devida ao acréscimo de massa muscular, de força e de capacidade de oxigenação.


Mas, na quarta, o tribunal esportivo expressou "sérias preocupações" a respeito do progresso da justiça e da aplicação prática dos limites de testosterona. Tais preocupações incluem a potencial dificuldade que as atletas terão de permanecer dentro dos limites permitidos por meio do tratamento hormonal e a "impossibilidade prática" que muitas atletas poderão enfrentar para se manterem dentro das regras, por causa dos efeitos colaterais do tratamento.


O CAS também se preocupa com a falta de evidência concreta de que atletas com diferenças de desenvolvimentos sexuais ganham vantagem significativa em distâncias mais longas, como os 1.500m e a milha. O painel de juízes pediu à Iaaf considere deixar de aplicar a regra da testosterona para além dos 800m "até que mais evidências estejam disponíveis".


Semenya divulgou uma nota através de seus advogados: "Eu sei que as regras da Iaaf sempre me tiveram como alvo específico. Por uma década, a Iaaf tentou me frear, mas isto de fato me tornou mais forte. A decisão do CAS não vai me conter. Eu vou me levantar dnovamente e continuarei a inspirar jovens mulheres e atletas na África do Sul e em todo o mundo."


Os advogados de Semenya afirmam que poderão recorrer da decisão, argumentando que "o raro dom genético dela deveria ser celebrado em vez de limitado'. Semenya pode apelas à Suprema Corte Suíça, mas apenas em alguns aspectos.


A Iaaf aceita atletas com diferenças de desenvolvimento sexual como legalmente femininas. Para propósitos de competição, porém, a federação as considera como homens do ponto de vista biológico. A Iaaf diz que isto é necessário para prover um patamar de competição em que provas sejam vencidas por margens tão curtas quanto um centésimo de segundo. Não fazer essa diferenciação, diz a Iaaf, arriscaria "perder a próxima geração de mulheres atletas".


A maioria das mulheres, atletas de elite incluídas, têm níveis de testosterona que vão de 0,12 a 1,79 nanomoles por litro, diz a Iaaf, afirmando que o alcance masculino depois da puberdade é bem maior, indo de de 7,7 a 29,4 nanomoles por litro. Nenhuma mulher teria níveis naturais de testosterona no patamar de 5 nanomoles ou mais por litro sem apresentar as chamadas diferenças no desenvolvimento sexual ou tumores, de acordo com a Iaaf.


Detentora do recorde feminino da maratona, a inglesa Paula Radcliffe disse que respeita a decisão do tribunal "por determinar que o esporte feminino precisa de regras a fim de protegê-lo".


Mas Semenya e seus apoiadores desafiam a noção de que o sexo biológico é tão nitido e binário. A sul-africana qualifica a regra da Iaaf, que foi introduzida há um ano, como "desnecessária do ponto de vista médico, discriminatória, irracional, injustificável" e uma violação das regras do esporte e dos direitos humanos universalmente reconhecidos.


Ex-atleta da Austrália e rival de Semenya, Madeleine Pape afirmou que mudou sua opinião de que Semenya deveria ser proibida de correr contra mulheres.


"Creio que é difícil traçar uma linha biológica em torno da categoria feminina", diz Pape, hoje candidata a Ph.D em sociologia na Universidade do Wisconsin. "Eu quero me certificar de que as pessoas entenderão as complexidades e que vão olhar para essas mulheres como pessoas reais."


Atletas deveriam ter a permissão de competir com base em seu gênero preferido "para vermos o que acontece", diz Pape. "Não estou dizendo que é uma solução, mas acho que é um começo."

 

Francine Niyonsaba, do Burundi, terminou logo atrás de Semenya nos 800m da Olimpíada do Rio. No mês passado, ela confirmou que também tem níveis elevados de testosterona. Ela acusou a regra da Iaaf de ser discriminatória.


"Não faz sentido algum", disse Nyonsaba, numa entrevista ao Olympic Channel. "Eu não escolhi nascer assim. O que eu sou? Sou uma criatura de Deus."


Falta de evidências médicas convicentes


A Associação Médica Mundial convocou médicos do mundo inteiro a recusar a aplicação da regra da Iaaf. O presidente da entidade, o israelense Leonid Eidelman, declarou em nota: "Nós temos fortes reservas a respeito do valor ético dessas regras. Elas são baseadas em evidências frágeis de um único estudo, o qual está sendo largamente discutido neste momento pela comunidade científica".


Um grupo de cientistas acusou a Iaaf de se basear em dados falhos ao tentar estabelecer com precisão que vantagens beneficiam as atletas com níveis elevados de testosterona. Os advogados de Semenya e outros apoiadores da causa argumentam que a ciência não mostrou de forma conclusiva que taxas elevadas de testosterona são mais significativas que outros fatores como nutrição, acesso a bons treinamentos e infraestrutura e outras variações genéticas e biológicas.


Como será em Tóquio?


A determinação da corte foi acompanhada de perto também por atletas transgênero e por oficiais do Comitê Olímpico Internacional (COI), que se preparam para estabelecer as linhas-mestras para participantes nos Jogos de Tóquio-2020.


Não se requer mais de atletas transgêneros que tenham feito cirurgia de mudança de sexo a fim de tomar parte dos Jogos. Aqueles que fazem a transição de mulher para homem competem sem restrições. Já os que passam de homem para mulher devem declar que sua identidade de gênero e feminina e que, para fins esportivos, não podem mudar de ideia pelos próximos quatro anos. Os atletas devem manter seus níveis de testosterona abaixo dos 10 nanomoles por litro ao longo de um ano antes de estarem aptos para as Olimpíadas.


A sentença do caso de Semenya, no entanto, pode levar o COI a recomendar que as federações dos esportes adotem a contagem de 5 nanomoles por litro.


Para Pape, a ex-atleta olímpica, a sentença do CAS e a regra da Iaaf se resume a medos e confusões a respeito de mulheres trans competindo.

 

Curtiu? Siga o PORTAL DO ZACARIAS no Facebook e no Twitter. 


Mas Coleman, a professa de direito, afirma que, no esporte, distinguir as pessoas com base na biologia delas realmente significa muito:


"Importa porque, se falharmos nisso, perderemos a capacidade de isolar as melhores mulheres do planeta. Poderíamos nunca mais ver um corpo feminino no pódio."

 

O Globo

LEIA MAIS
DEIXE SEU COMENTÁRIO

Nome:

Mensagem:

publicidade

publicidade

publicidade

publicidade

publicidade

Acompanhe o Portal do Zacarias nas redes sociais

Copyright © 2013 - 2024. Portal do Zacarias - Todos os direitos reservados.