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15/05/2020

Tão e forte tão frágil: o coronavírus mostrou que os EUA têm que mudar

Foto: Divulgação

Navio-hospital passa perto da Estátua da Liberdade: no epicentro da pandemia

Na noite de 4 de fevereiro, o presidente Donald Trump foi ao Congresso americano para fazer o tradicional discurso do Estado da União, no qual o chefe de governo relata anualmente as condições do país e traça as prioridades da gestão.

 

Um dos pontos destacados por ele durante seu discurso de 90 minutos, interrompido por aplausos e gritos de apoio dos legisladores republicanos, foi a situação de emprego no país.

 

“Desde minha eleição, criamos 7 milhões de novos empregos”, declarou. “A taxa de desemprego é a menor em mais de meio século.” Até aquele dia, tudo parecia correr bem na maior economia do mundo.

 

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Os riscos do novo coronavírus, descoberto no fim de 2019 na China, eram desdenhados por Trump — até então, os Estados Unidos tinham 11 casos confirmados e nenhuma morte. “Está tudo sob controle”, dizia o presidente, que proibira os voos procedentes da China desde 1o de fevereiro.

 

 

Mas algo saiu errado — terrivelmente errado. Três meses depois, os Estados Unidos tinham 1,1 milhão de pessoas com a covid-19 — um terço dos casos confirmados no mundo — e 64.000 mortos.

 

No fim de abril, Andrew Cuomo, governador do estado de Nova York, o epicentro da pandemia no país, afirmou que, enquanto Trump estava preocupado com a China, o vírus provavelmente se disseminara por meio de passageiros vindos da Europa — entre janeiro e fevereiro, 2,2 milhões de pessoas desembarcaram no aeroporto de Nova York e no de Nova Jersey em 13.000 voos procedentes de países europeus.

 

Qualquer que seja a origem do vírus que se propagou nos Estados Unidos, o alto número de casos de covid-19 no país é reflexo de uma gestão descoordenada. A Constituição americana, de 1787, conferiu grande autonomia aos estados. Apesar das vantagens desse arranjo, ele é falho na ausência de uma figura capaz de fazer uma boa articulação das ações, como ficou patente na atual crise.

 

Os 50 estados americanos disputam entre si a compra de ventiladores e outros equipamentos médicos escassos no mercado e divergem sobre a necessidade de quarentena. “A estrutura federal americana fez com que a resposta à pandemia fosse fragmentada em diversas autoridades, tendo até mesmo competição entre os estados e diferentes níveis de governo”, afirma o cientista político Ehud Eiran, pesquisador em relações internacionais da Universidade de Haifa, em Israel.

 

 

Nesse ambiente, o fato é que em pouco tempo a covid-19 conseguiu provocar uma catástrofe até há pouco tempo inimaginável na economia americana.

 

O PIB do país, que tinha crescido de forma consistente nos três primeiros anos do governo Trump, caiu 4,8% no primeiro trimestre deste ano, a maior queda desde a crise financeira de 2008. Em seis semanas, 30 milhões de americanos entraram com pedido de seguro-desemprego — e os 23 milhões de empregos criados no país desde a recessão de 2008 evaporaram. As bases construídas em uma década se esfacelaram.

 

 

Como foi possível eliminar milhões de empregos da noite para o dia? Uma das razões vem das características do capitalismo americano, que dá grande liberdade para uma empresa na hora de contratar e demitir.

 

As leis variam conforme o estado, mas, regra geral, as empresas podem contratar funcionários sem burocracia e demiti-los sem pagar nenhuma indenização. Num momento de aperto como o atual, quando a quarentena obriga a paralisação de muitos negócios, as empresas não pensam duas vezes em enxugar a folha de pagamentos.

 

É uma realidade bem diferente da encontrada em muitos países europeus. Na Alemanha, por exemplo, um empregado demitido tem direito a receber 60% do salário líquido por 12 meses.

 

Como é caro demitir, as empresas preferem negociar uma redução da jornada de trabalho e do salário — o governo subsidia a diferença para evitar a perda de renda. Nos Estados Unidos, o Congresso aprovou uma ajuda emergencial de 1.200 dólares a cada contribuinte solteiro com renda anual de até 75.000 dólares, e o dobro do valor aos casados mais 500 dólares por filho.

 

“O Congresso escolheu um pagamento único de auxílio a indivíduos carentes e a expansão do desemprego, em vez da alternativa europeia de priorizar a retenção de empregos”, diz Christine Desan, professora de direito na Universidade Harvard e coautora do livro American Capitalism — New Histories.

 

A inexistência de um aparato robusto de proteção social, capaz de dar apoio à população mais vulnerável, torna o cenário ainda mais duro para os americanos.

 

“A fragilidade das redes emergenciais sociais — que incluem saúde pública, salários, segurança de renda e emprego para trabalhadores informais — aumentou os impactos negativos da crise no bem-estar da população”, diz o economista Barry Eichengreen, professor de economia e ciências políticas na Universidade da Califórnia em Berkeley (leia entrevista abaixo).

 

Os Estados Unidos são o único país rico sem um sistema de cobertura de saúde universal, como o SUS brasileiro. A maioria dos americanos tem seguro-saúde privado, pago pelo empregador — quando uma pessoa é demitida, perde o benefício.

 

Os custos médicos nos Estados Unidos são os mais altos do mundo. Um exame de tomografia computadorizada sai por 1.100 dólares, ante 140 dólares na Holanda. Não por acaso, 67% dos americanos que entram com pedido de falência pessoal a cada ano o fazem por dívidas médicas.

 

Há um agravante: a pandemia do coronavírus tem atingido mais os trabalhadores de menor renda, responsáveis por tarefas que não podem ser executadas à distância em tempos de quarentena, como os atendentes de supermercados, entregadores e funcionários de limpeza. Com isso, o vírus tem infectado desproporcionalmente mais os negros.

 

 

Na cidade de Chicago, os negros são 30% da população, mas 70% dos casos de covid-19. O resultado esperado disso é a ampliação da desigualdade social no país, onde a distância entre as famílias mais ricas e as mais pobres dobrou em 30 anos — em 2018, os 20% dos americanos mais ricos receberam 52% da renda total do país, enquanto os 20% mais pobres ficaram com apenas 3%.

 

A crise da pandemia expõe também a vulnerabilidade de uma economia em que o consumo representa 70% do PIB, acima da média global, em torno de 63%. Com crédito farto e barato, os americanos aproveitaram os cortes de impostos promovidos nos últimos anos para gastar mais e fazer dívidas.

 

Um corolário disso é o baixo nível de poupança. No fim de 2019, uma pesquisa revelou que 45% dos americanos não tinham sequer 1?dólar na conta bancária, um percentual altíssimo de pessoas incapazes de pagar o aluguel ou comprar comida numa situação de emergência. Um retrato disso são as longas filas formadas nas últimas semanas em bancos de alimentos em diversas regiões do país. Milhões de americanos têm enfrentado horas nas filas para receber comida de graça — sentados em carrões que valem alguns milhares de dólares.

 

 

O avanço do coronavírus no país deve ter impacto também na globalização, que já vinha sofrendo ataques de Trump. Em meados de abril, o presidente americano anunciou a suspensão do envio de verbas à Organização Mundial da Saúde, acusando a instituição de favorecer a China e acobertar fatos sobre a disseminação do coronavírus.

 

Para o pesquisador Ehud Eiran, o gesto indica um país cada vez mais voltado para os problemas domésticos e fechado à colaboração internacional. “A crise de saúde pública exacerbou um movimento existente. O esforço de Trump para levar fábricas de volta aos Estados Unidos, interrompendo as cadeias de suprimento globais, e para restringir a imigração deve se somar à crise econômica que está por vir e que vai reduzir o comércio internacional.”

 

 

Com Trump apostando como nunca em seu lema, “America first”, baseado em pilares como nacionalismo, protecionismo e unilateralismo, a dúvida é como ficarão as ambições geopolíticas dos Estados Unidos. O país é hoje, de longe, o que mais gasta com a área de Defesa — 685 bilhões de dólares no ano passado. Antes da pandemia, os gastos astronômicos eram justificados — e aprovados pelo Congresso — pela primazia americana de maior potência econômica e militar do planeta.

 

Agora a crise provocada pelo coronavírus pode começar a balançar essa estrutura. “Já está ocorrendo uma vasta disputa por financiamento por parte dos diferentes departamentos das Forças Armadas americanas, e isso deve se exacerbar nos próximos meses”, diz o britânico Simon Mabon, professor de relações internacionais na Universidade de Lancaster, no Reino Unido. “Poderemos assistir a uma virada dramática na estratégia global, com os Estados Unidos se afastando da posição de líderes incontestáveis do mundo.”

 

 

Desde o ano passado, os Estados Unidos vinham retirando tropas da Síria, um dos maiores focos de conflito do mundo. Neste ano, Trump aceitou uma resolução do governo iraquiano de abrir mão de parte de sua presença militar no país. Agora, com o país caminhando para a recessão, essa estratégia poderá ganhar mais força. Qualquer mudança de maior impacto, no entanto, deve acontecer apenas no longo prazo.

 

 

Afinal, o lobby da indústria bélica segue firme no Congresso e ainda não há no horizonte sinais de cortes imediatos no orçamento militar. “Os Estados Unidos ocupam uma posição privilegiada por ter a maior reserva financeira do mundo, o que facilita a tomada de empréstimos no mercado internacional”, diz Jon Lieber, diretor da consultoria Eurasia para os Estados Unidos. “Isso deve manter os custos de dívida baixos e ajudar a financiar o grande gasto americano com Defesa.”

 

 

A manutenção do papel de guardiões do mundo, que os Estados Unidos assumiram depois da Segunda Guerra Mundial, dependerá também de quem sair vencedor nas eleições presidenciais de novembro. Apoiado nos bons indicadores da economia, Trump vinha nadando de braçada para garantir seu segundo mandato, mas veio a pandemia — e o desemprego recorde —, e hoje sua vitória já não parece tão certa.

 

“Ficando no poder, Trump dará sequência à sua política internacional descoordenada e nacionalista, sem expectativa de mudança”, diz o economista Robert Scott, do Economic Policy Institute, em Washington. Já Jeremy Ghez, professor na escola de negócios HEC Paris, é mais descrente do peso do resultado das próximas eleições.

 

“Muitas pessoas fora dos Estados Unidos acreditam que Trump seja apenas um acidente na história”, afirma. “Independentemente de quem for o próximo presidente, o resto do mundo precisará convencer os Estados Unidos a redefinir as relações de interdependência.”

 

Fotos: Reprodução 

 

Em qualquer cenário, a crise americana tende a levantar novos questionamentos sobre o futuro do capitalismo. “Tudo isso está acontecendo num momento em que estamos passando por uma crise de saúde pública e pela transição de uma sociedade industrial para uma pós-industrial”, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais na Faap e especialista em política americana.

 

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“O capitalismo vai continuar enfrentando desafios, mas teremos de ser criativos para solucioná-los ou para criar um sistema político-econômico que seja viável para essa nova sociedade. Nesse sentido, acredito que a pandemia vai acelerar essa busca.” No fim das contas, não há como a maior potência do mundo entrar na UTI e o restante do planeta ficar saudável. Que os Estados Unidos consigam se recuperar da crise tão rápido quanto mergulharam nela.

 

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